sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Se lembrares que existi


Se notares entre as linhas furtivas
de meu olhar que ele é fixo no teu corpo,
imploro que o deixe permanecer.
Se notares meu suspiro cansado
que mancha o ar tão puro que inspira, imploro-te,
de vez por todas, que o deixe quieto,
permita-o perecer sob a tensão
que criei entre nós e que pedacinhos
do ar que respiro cheguem até ti.
Se notares olheiras, não pergunte
jamais se deixei de dormir por ti.
Se notares as razões, alegrias
e os vícios, peço que leve-os contigo
para a cova confortável de teu
adormecer, e divida-os comigo
lá, quando chegar lá, onde tu, morta,
me encontrarás vivo sonhando com
a bela vida que nunca tivemos.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Cangaço


Está frio. Congelo sob o Sol
de trinta e cinco graus.
Meu sorriso racha no ar seco,
sinto falta de sorrisos sadios
desperdiçados sem razão
e destes sonhos de criança
que nunca compartilharei.
Ainda estou aqui, depois destes
segundos que são como eras,
cantando músicas fúnebres
sob a chuva que nunca cai.
Ainda estou no meio deste mar,
mar de areia, concreto e isolação,
rezando para que o vento...
Para a remota chance de
que ele te carregue até
um pouco mais perto.
Rezando para que ele traga
minha alma de volta ao corpo.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Embrulho


Embrulhei seu sorriso numa folha,
não numa folha enfeitada,
mas numa folha singela e pacata,
numa sulfite velha e amassada.

Bagagem nas costas, sai à rua
com um embrulho no bolso do paletó
e a ambiguidade referente a troca
que aperta com desdém meu peito.

E o pacote amassava mais a cada vez
que o apresentava a prostitutas
e executivos que se proliferavam
no meu horizonte atormentado.

Cada vez menos desejável,
desejei o envelope para mim,
como nunca antes. Desejei-o
dentro de mim, parte de mim.

Constrangido, vaguei por alamedas
e ruas mil, de havaianas e pantufas,
sem abrir o envelope que me sela
entre o céu e o asfalto quente do inverno.

E enquanto o alcool de meu sangue
é inflamado pelo calor do chão,
uma folha amassada em branco
me mantém vivo, medíocre.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Anil


Tenho um punhado de sonhos e minha eterna misantropia a combater. Alguns deles são toscos, pitorescos e infantis. Outros, são somente arquétipos de uma satisfação que nem mesmo sei se quero satisfazer. O grande problema, querida, é acordar todo dia e encarar post-its virtuais colorindo a janela e a parede do quarto com as notas de tudo que deveria ter sido feito - por mim.
Uma olhada rápida no espelho me faz perceber que sou perfeito, e um segundo a mais basta para esculpir olheiras fundas no mármore sujo de meu rosto, corroído pelo espírito em putrefação que mantém a estátua viva. Outro segundo desenha com esmero as linhas da idade que nunca vou ter, enquanto caricias infindas transformam minha superfície em pó.
Em vias congestionadas, entre o que poderia ser e o que jamais será, a realidade se constrói ao meu redor num piscar de olhos, estes que, cada vez que são fechados, retornam as imagens das obrigações de realizar sonhos. Meus sonhos são correntes que me prendem no cárcere de meu corpo. Minha vida é minha condicional. Alguém deve ser minha liberdade...